A descolonização como processo de cura de uma Medicina Colonial – Parte I
Decolonização é um processo de revisão intelectual, epistemológica, lógica e cognitiva, que vem atravessando todas as áreas do conhecimento, a partir do reconhecimento de que o Colonialismo, para além do sistema de dominação conhecido, constitui um sistema de dominação epistemológica e nas formas de produção e reprodução do conhecimento e da vida.
A característica principal desta lógica é que ela defende apenas a legitimidade de um modelo de RACIONALIDADE (herdado da Cultura Ocidental), a concessão à Ciência Moderna da da distinção dos saberes verdadeiros e falsos, e um modelo de ser sociedade (o Capitalismo global). Tudo o que escapa a isso é produzido como inexistência e subalternidade (SANTOS, 2003).
Santos (2003) atribui ao pensamento colonial ao menos duas críticas: seu caráter indolente, já que transforma interesses hegemônicos de uma cultura particular em verdade universal; e seu caráter metonímico de narrar a si, como referência, totalidade e a única verdade do mundo, colocando todos os outros sistemas de conhecimento e culturas como partes, derivativas, inferiores e subordinadas, desvirtuando a diversidade e a legitimidade dos sistemas culturais e de conhecimento, transformando a vida em uma monocultura de pensamento.
O pensamento descolonial ou decolonial não é contra a ciência e nem sua racionalidade, mas reconhece a legitimidade da diversidade epistemológica do mundo e dos diversos sistemas de conhecimento e produção dele. A crítica contra-epistemológica não implica no descrédito da racionalidade ocidental e nem na ciência, mas apenas em seu alargamento e sua horizontalidade. Santos denomina de ecologia dos saberes essa contra-epistemologia. como um dispositivo que procura dar consistência epistemológica à diversidade do conhecimento (SANTOS E MENEZES Org, 2009).
A Medicina, como todas as outras áreas de conhecimento, não ficou imune à arrogância colonial. Segundo Mello (2008), não se “bastou criar uma forma médica para a pensar a saúde, precisou-se nomear curandeirismo e bruxaria as formas outras de relação com a saúde” e essa herança, de produção de subalternidades, pode ser observada a partir da história social da medicina, com a criação das Universidades, sob a proteção de monarquias e papado, em que se cria um fosso entre a emergência de saberes médicos teóricos e saberes médicos práticos, marginalizando os últimos, e rechaçando os sistemas de saúde que, na idade médica, se refugiavam nos mosteiros beneditinos. Assim, as universidades nascem como aparato institucional do pensamento colonial.
Hoje, não é mais possível adentrar o campo dos estudos produzidos, sem buscar acessar as condições e premissas de produção desses conhecimentos, seus fundamentos, seus conceitos, suas terminologias, seus verbos e suas metodologias. É preciso fundar, a um só tempo, um conhecimento e suas condições éticas de produção, tendo em vista a superação dos epistemicídios (morte de sistemas de conhecimentos não hegemônicos) ao longo do tempo, que extinguiram sistemas de cuidado com a vida preciosas, cuja devastação empobreceu e empobrece as formas de cuidar dos seres humanos e da vida. Somos chamados a curar as formas de pensar que originam formas adoecedoras de viver.
Como se manifesta, hoje, o pensamento colonial, nas práticas médicas? Veremos isso no próximo artigo.
Referências
MELLO, Marisol Barenco Corrêa de. Diferentes lógicas no ensinar e no aprender: por uma pedagogia das ausências, pp. 34-54. In: GARCIA, Regina Leite; ZACCUR, Edwiges (Org). Alfabetização: reflexões sobre saberes docentes e saberes discentes. São Paulo: Cortez, 2008, pp. 34-54.
SANTOS, Boaventura de Sousa. Para uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências. Em: Santos, Boaventura de Sousa (Org.). Conhecimento prudente para uma vida decente: “Um discurso sobre as ciências” revisitado. Porto: Afrontamento, 2003, pp. 777-821.
SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula (Orgs) Epistemologias do Sul. Coimbra: CES/Almedina, 2009.