Autointeligência e auto-organização: o quanto confiamos nisso?

A cultura cientificista, que veio se formando desde o Renascimento, em uma espécie de oposição à Idade Média e ao seu teocentrismo, colocou o ser humano no centro dos processos da vida. Mais do que isso, com René Descartes (1596-1650) temos uma especificidade em relação a esse humano: a razão no centro dos processos, com seu “Cogito, ergo sum” (Penso, logo existo). Deste paradigma nasce, um século mais tarde, a Revolução Industrial, com um desenvolvimento tecnológico gigante e com uma visão mecanicista da vida. Quase três séculos depois podemos afirmar que vivemos em uma sociedade altamente tecnológica. Todas as áreas do conhecimento se apoiam nestas tecnologias de ponta, que teoricamente não substituem o ser humano, mas que enfraquecem, a cada dia, a sua capacidade interpretativa e hermenêutica.

Na Medicina, por exemplo, vemos estas questões surgirem nas formações médicas. Cada vez mais os estudantes se apoiam nas tecnologias e cada vez mais estão frágeis em semiótica. Se contrastarmos essa medicina moderna potentíssima, com a Medicina Tradicional Chinesa, de cinco mil anos, veremos que a tecnologia presente ali se apoiava na capacidade aguçadíssima e hermenêutica do médico, que conseguia fazer anamneses precisas sem uma máquina sequer, mas observando atentamente a saburra lingual de um paciente, assim como o toque dos dedos em seu pulso.

A grande questão não é levantarmos um discurso contra ou a favor às máquinas e às perspectivas tecnológicas, mas pensarmos em formas de equilibrarmos essas lógicas de produção do conhecimento; no caso, de diagnósticos e tratamentos, em favor do reequilíbrio da Vida.

Um dos grandes obstáculos à Vida emergem dessa cultura tecnicista, quando esta se apoia demais na razão e na cientificidade dos processos, em uma ilusão de controle, deixando pouca margem e espaço para os processos inatos à vida, como, por exemplo, autointeligência e auto-organização.

Gosto de contemplar, sempre que posso, o processo de regeneração imediata de um corte no dedo ou uma pequena queimadura, quando me dou ao luxo de não colocar nenhuma substância externa, mas poder observar, a cada dia, no tempo da vida, o milagre da regeneração. De igual forma, gosto de cultivar batatas doce em água, porque a brotação que se dá a partir daí é miraculosa: hastes vegetais de enorme forma ascendente despontam e crescem, tendo como estímulos, apenas água e luminosidade do sol. A cada dia, quando contemplo o vigor ascendente daquelas hastes, penso no mistério da vida, ou em sua própria tecnologia inata, que, por mais que a estudemos e por mais que quimicamente a decompusemos, escapa-nos.

É no bojo dessa consciência que despontam, em diálogo com a tradição e com a sabedoria ancestral, formas terapêuticas e medicamentosas colaborativas, que preveem, em seu processo, uma abertura ao diálogo, para que a vida possa atuar, também, em sua tecnologia inata. Nestes sistemas, o terapeuta e o médico são pessoas dotadas da capacidade de observação, interpretação e escuta, muito mais do que de intervenção. Levar em conta o processo inato de inteligência e auto-organização da vida supõe escolher terapêuticas que ressoem, de forma benfazeja, princípios de colaboração e não supressão. Sempre fico a pensar, por exemplo, no caso de uma psiquiatria muito medicamentosa, que consegue suprimir mal-estares e sintomas… Fico a perguntar: para onde foi a dor que originou o desequilíbrio? Queremos nos curar ao nível da dor ou apenas suprimir sintomas desconfortáveis? Se buscamos a cura, precisamos alargar nossas lógicas e abarcar outras dimensões que normalmente são olvidadas. Na lógica da inteligência e auto-organização inatas, um conjunto de sintomas são uma forma de comunicação de um campo vital importantíssimas. Os sintomas e desconfortos estão a nos sinalizar sobre nossas necessidades de mudança. Calar esse processo, de alguma forma, ou ficar apenas ao nível dele, implica suprimir processos de vida muito importantes.

Neste sentido, o que mais me encanta, na metodologia BioFAO, é saber que existem médicos e médicas que se colocam, em reverência, à escuta de um Campo Vital maior e que, em última instância e para além de qualquer tecnologia, é o grande soberano que nos conduz. Não há tecnologia mais mágica e miraculosa do que a de um campo vital inteligente e auto-organizador.

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