A descolonização como processo de cura de uma medicina colonial – parte II
Se você está lendo este artigo, sugiro que leia a parte I, onde o tema é devidamente apresentado.
Como se manifesta, hoje, o pensamento colonial, nas práticas médicas? – Essa é a questão deste artigo.
Bom, todo pensamento decolonial ou contra-epistemológico não se encontra pronto. Ele vem sendo construído processualmente. Temos pistas. Todos nós, intelectuais de todas as áreas ou não, fomos forjados em lógicas coloniais por longos anos, e hoje, não se supera tais lógicas sem um trabalho consistente, teórico-prático, ao nível de nossas subjetividades. Não basta interferir na prática e nos modos de viver e trabalhar, se não corrigirmos as rotas de nossas subjetividades e lógicas, que se dão em processos de produção altamente complexos e invisíveis.
Um trabalho precioso que se pode fazer em cada área, que Santos (2003) denominou de Sociologia das Ausências, e que Mello (2008) propôs como Pedagogia das Ausências, no âmbito da Educação, é uma Medicina das Ausências.
Como psicóloga e não médica vou registrar aqui algumas intuições que o pensamento decolonial pode nos inspirar no campo da Medicina e dos sistemas de cuidado com a vida.
Em primeiro lugar, se entendemos, na lógica decolonial, que os sistemas de conhecimento que o mundo produz são legítimos para além da racionalidade e da ciência – aliás, basta lembrar que as grandes pirâmides do Egito, assim como a Medicina Tradicional Chinesa, entre tantas invenções que engendram sistemas complexíssimos de conhecimento, apareceram muitos séculos antes da chamada Universidade e da Ciência Moderna -, já podemos denotar que um bom terapeuta, ainda que tenha sua linha de atuação, saiba transitar entre várias racionalidades médicas, para que possa ter uma visão abrangente acerca dos sistemas de cuidado com a Vida. Quem conhece apenas um sistema, mesmo que seja um hiperespecialista, sabe muito pouco da infinidade desse viver. E não se pode saber apenas de sua área, já que a vida é sempre multidimensional. Não apenas o que comemos nos adoece. Adoecemos por aquilo que acreditamos, que sentimos, adoecemos porque perdemos a nossa casa na enchente, porque alguém perdeu seu filho, seu amor e seu emprego, porque um determinado país entra em guerra. Doença e saúde são realidades sistêmicas. Um saber linear não dá conta do sistêmico.
Exatamente porque os conhecimentos são muito mais amplos que nossa capacidade de apreensão, eles são complementares. Então, um profissional de saúde não deve estar, na relação dialógica com um paciente, como detentor de um saber sobre o outro alguém, mas como alguém portador de um saber colaborativo e cooperativo, aberto a se somar a muitos outros.
O fato da cultura médica sistematizar conhecimentos sobre a vida, de forma especialista, e o fato da cultura popular não ter acesso a estes conhecimentos básicos sobre sua vida, gera um desequilíbrio muito grande nas relações médico-paciente, gerando um monopólio no primeiro sobre o segundo, e uma ausência de autonomia no segundo. O pensamento abissal está instalado aí (SANTOS E MENEZES, 2009): um grupo de ‘sabichões’ diante de um grupo de ‘ignorantes’. Produzir o outro como ignorante faz parte de uma lógica colonial. O que é de fato ignorância neste tipo de relação: O colonialismo como premissa ou a realidade dialógica entre dois sistemas de conhecimento diferentes que se encontram?
Outro aspecto que marca a colonialidade dessa relação é que a ciência é composta de enunciados genéricos e protocolos gerais, como parte do seu método, em detrimento da singularidade de cada vida humana. Ainda que se possa estudar tudo de uma determinada doença e de um corpo humano, na relação médico-paciente, um médico se encontra sempre de uma singularidade humana aberta para o mistério da vida. Assim, a D. Maria e o Sr. João, nunca serão genéricos e nem passíveis de protocolos. Assim como seus processos de adoecimento são únicos, únicos também serão seus caminhos de equilíbrio e cura. Por isso, a Medicina, mais do que uma ciência, constitui-se como arte de cuidar e de curar.
Um fator importantíssimo na perspectiva decolonial da medicina é que o médico precisa ser aquele que contribui no processo de autoconhecimento do paciente, e não que detém conhecimentos sobre o outro. Isso, para uma área de conhecimento que é hierarquicamente considerada superior em termos acadêmicos, é um grande desafio. Basta vermos que um médico graduado é chamado de doutor, mesmo que não cumpra os requisitos acadêmicos para receber tal titulação (como o doutorado e o pós-doutorado). Contribuir com o processo de autoconhecimento do outro implica na abertura e no conhecimento para o sistema de crenças do outro. Afinal, como nos ensina a psicossomática, um paciente adoece sob um determinado sistema de crenças, e instaura o seu processo de restabelecimento da saúde ou não sob o mesmo sistema. Isso quer dizer que, entre o sistema de crenças do médico e o sistema de crenças do próprio paciente, o paciente sempre seguirá sempre o seu sistema e não o do outro. O que pode haver é, mediante a uma transferência positiva com o terapeuta, o paciente permite alargar o seu sistema de crenças com elementos que vêm do médico que o atende. Quando isso não acontece, não há relação terapêutica. Há atendimentos pontuais. Por isso muitos pacientes não voltam às consultas e abandonam tratamentos. Esse fator vale não só para o que chamamos de senso comum, mas também para pessoas com níveis culturais mais elevados. E podemos compreender um sistema de crenças, não apenas em seus fundamentos lógicos, mas sobretudo emocionais e espirituais.
Esses são alguns fatores que podemos considerar em uma perspectiva decolonial, em termos relacionais. Não tocamos aqui nas questões de tecnologia, nas questões medicamentosas e nem mesmo na concepção de doença e saúde e sua relação com a natureza, assim como as questões capitalistas das grandes indústrias e seus interesses. Assim como não trabalhamos aqui reflexões sobre práticas alternativas de cuidado, como a Medicina Integrativa, que pode ser inovadora em relação à terapêutica, mas ainda assim continuar colonial em sua perspectiva dialógica.
Como este processo está em plena construção, convidamos a todos os que se interessarem pela leitura, que possam ir fazendo suas próprias sínteses e construindo práticas de ecologias de saberes, contra-epistemológicas, mais inclusivas e curadoras do sistema vida e da Medicina.