Desver o medo da sombra para ver com suavidade a luz do equilíbrio
Vivemos em um tempo de grandes desafios. Neste contexto, a lucidez é algo que se aspira. Ela é a luz-mestra que nos conduz, como vagalume, em noites escuras.
Gostaria de trazer um conto e uma reflexão, a partir de Chuang Tzu, um dos maiores escritores taoístas da história, esta vertente filosófica mais intuitiva, emocional, ligada à natureza. É atribuído a ele o conto chamado A Fuga da Sombra
[1]:
Levantou e pôs-se a correr. Mas, sempre que colocava o pé no chão, aparecia outro pé, enquanto a sua sombra o acompanhava, sem a menor dificuldade.
Atribuiu o seu erro ao fato de que não estava correndo como devia. Então, pôs-se a correr, cada vez mais, sem parar, até que caiu morto por terra.
O erro dele foi o de não ter percebido que, se apenas pisasse num lugar sombrio, a sua sombra desapareceria e, se se sentasse ficando imóvel, não apareceriam mais as suas pegadas.
Este texto fala de um modo de vida adquirido na modernidade, de livrar-se do que incomoda, de fugir da sombra, de correr como forma de se aspirar estar em outro lugar, de recusar-se a olhar para dentro. Fala também sobre a dificuldade de se parar, de se ver-enxergar, de compreender.
Em 1888, o filósofo Nietzsche
[2] falava da importância dos educadores, entre outras coisas, porque precisamos “aprender a ver”. Para o filósofo, ver significa acostumar os olhos à quietude, à paciência, a aguardar atentamente as coisas, a protelar os juízos (…). Para ele, aprender a ver é uma espécie de preparação para uma vida contemplativa, que nos ensina uma competência muito importante – sobretudo no tempo em que nos encontrarmos -, chamada, por ele, de vontade forte, e que tem a ver com a capacidade de não reagirmos imediatamente a um estímulo a que nos vemos expostos. Poder suspender uma decisão ou sustentarmos uma oposição ao estímulo, sem uma reação imediata, seria o desafio. Esta reação automática seria prova, para Nietzsche, de um caráter doentio, de decadência, de um sintoma de esgotamento.
Apenas um século se passou e nos vemos imersos em um modelo de sociedade das conexões absolutas[3], com a mobilização total dos sentidos. A característica deste tempo é a produção de estímulos em larga escala e a idealização de um ser humano multitarefa. Tudo nos convoca e nos seduz à reação e ao estar fora de nós. É neste contexto que podemos situar a depressão, esgotamento, suicídio, e desânimo, já que reagir é desmerecer a si e para legitimar o outro.
O desequilíbrio nos chega quando estamos reféns do mundo dos outros, da vida dos outros, das redes sociais dos outros, e não temos mais tempo para existir em nós e para nós. Construir as próprias pautas de vida e não agir de acordo os projetos do mundo que são tecidos à revelia de nós é uma condição de saúde.
Já passou do tempo de tomarmos a nós mesmos pelas mãos e nos conduzirmos à Casa que somos. Vivermos em consonância com os nossos ritmos, com nossos amores, com os nossos valores, com as nossas referências e com imagens de mundo e de vida restauradoras. Na casa que somos há bastante luz. E porque há luz, haverá sempre sombras. Mas também haverá a qualidade de um ver, que o filósofo Nietzsche exalta como aquela que acostuma os olhos à quietude, à paciência, a aguardar atentamente as coisas. É um ver que olha com justiça e respeito, a si, ao outro e ao mundo, com suavidade e sem medo, de tal forma, que a dimensão de sombra que adoece cede lugar à dimensão de luz que a tudo regenera. Sigamos!
Maristela Barenco Corrêa de Mello