Por Educações Vivas

Uma das características marcantes do Ocidente é a conservação dos seus inventos e intentos, a conservação de um estado de coisas que aconteceram, que foram sendo aprendidas, que foram registradas, que foram sendo ensinadas e perpetuadas. Uma conservação que sequestra e captura a experiência do próprio viver. Assim, as leis, as regras, os valores, os dogmas, as teorias, os estudos da arte, as metodologias, os ensinamentos, entre outras tantas coisas, tornaram-se mais importantes do que os processos de viver. Aprendemos para preservar e conservar um mundo, muito mais do que para inaugurarmos experiências singulares de mundo. Conservar um mundo e um tipo de mundo parece ser muito mais importante do que inventar outros mundos. Aprende-se sobre o amor, não para melhor amar, mas para conservar uma tradição e um vivido. Os livros, nesta tradição, seriam os depositários de tudo o que se quer conservar. Associamos o saber ao livro, muito mais do que o saber ao viver, ao experienciar.

Na contra-hegemonia do pensamento ocidental, o pensamento dos povos originários, povos de tradição oral e convivial, constituem, hoje, possibilidades de uma outra alfabetização, de uma outra educação, de outras formas de ser escola, de uma outra forma de ser mundo. Escolas Vivas. Assim é o Projeto de um Grupo, chamado Selvagem que, entre tantos temas, desde 2018, articulam-se, sobre a coordenação de Cristine Takuá, em torno de quatro experiências de escolas vivas: a dos Huni Kuin, a dos Maxakali, a dos Guarani e a dos Tukano (http://selvagemciclo.com.br/colabore/).

O eixo dessa ideia, uma espécie de reconhecimento de que os saberes se transmitem em relações vivas – com plantas, em terreiros, na floresta, com os ancestrais, é tão antiga, tão viva e tão sofisticada: a de que onde existem estes diálogos de saberes existem escolas vivas.

A cultura ocidental, e mais precisamente, a cultura do capital, a cultura industrial, a cultura científica e a cultura tecnológica colocaram o ser humano – ou mais especificamente um tipo de ser humano, no centro da vida e transformaram todas as alteridades em objetos a serviço desse humano. Como não é possível haver diálogo com objetos, já que estes não estão vivos e nem possuem voz, um tipo de ser humano perdeu a conexão com a Vida e a Comunidade de Vida, e tornou-se especialista em saberes – que são mais conhecimentos e informações – de conservação, de um vivido, de um passado, em outras palavras, de coisas que não são vivas.

Daí que o Mestre quilombola Antonio Bispo dos Santos questiona esse modo de ensinar e aprender, de cunho colonial, que ele chama de sintético, de se ensinar longe da feitura das coisas. Ele questiona, por exemplo, como um engenheiro pode ganhar muito mais do que um pedreiro, por projetar uma casa, se ninguém pode morar em um desenho projetado, mas apenas no resultado de uma construção feita por trabalho e mãos humanas? Para Mestre Bispo, a Escola e a Universidade ensinam fora dos lugares de fazer – quando uma Escola, viva, orgânica, precisa ensinar na feitura, para se tornar ensinamento, para prescindir de um livro, para ser encarnado em nós e para que possamos levá-lo onde formos em uma espécie de ethos.

Neste momento de crise planetária e climática em que nos encontramos, precisamos refundar ou reeditar (nas palavras de Mestre Bispo), as escolas de saber orgânico, ou as escolas vivas, inspiradas pelos povos originários. Não é mais possível manter a vida em uma sociedade que, como Mestre Bispo nos diz, coloca os avós nos asilos e as crianças nas creches. Para Nego Bispo, como é chamado, o lugar da geração neta é no colo da geração avó, no embalo de histórias e de tantos diálogos de saberes – com as irmãs plantas, com os irmãos animais, com as irmãs árvores, com a mãe terra.

Tal como nos chama a atenção Cristine Takuá, os saberes são muito mais amplos do que as letras e os números. As escolas capitalistas reduziram a totalidade das relações da vida em aquisição de palavras e letras. Para conservar um mundo. Para manter a ferro e fogo um mundo. Mesmo que este mundo já não pulse mais, e nem nos faça pulsar. Mesmo que este mundo esteja a acabar com a biodiversidade, com a força da floresta, com a Comunidade de Vida e com a singularidade humana. A quem serve, afinal, uma educação morta? A quem serve uma educação sintética? Que saibamos, a tempo e a contento, vivificarmos a Vida.

Coluna da Maristela Barenco na Revista Vento e Água – Ritmos da Terra

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