Resposta BioFAO sobre artigo da bióloga Natalia Pasternak atacando a homeopatia

Quando o “nada” (atribuído à Homeopatia) revela apenas os limites epistemológicos do pensamento

Imagine a seguinte situação hipotética: no ano de 2022, mais de um século depois da teoria da relatividade de Einstein, e da emergência de uma física moderna, na era da afirmação da diversidade epistemológica do conhecimento e dos diálogos transdisciplinares em torno das múltiplas racionalidades médicas, alguém afirmasse que a energia e a dimensão biofísica não existissem. Você a ouviria apenas por seu estatuto científico ou promoveria um diálogo?

No dia 18 de abril, o jornal O Globo, na seção Ciência, traz um artigo, de uma microbiologista, intitulado “Homeopatia é feita de nada”. Na era dos diálogos epistemológicos, da emergência de uma ciência complexa e transdisciplinar – isso para não termos que recorrer aos princípios já clássicos de uma física moderna, que já completaram um século!! -, não é possível acreditar na manchete que se apresenta. Logo se pensa ser uma frase de impacto, para que uma reflexão inteligente se teça.

A decepção se efetiva em cada frase do artigo e nas premissas que ele descortina, de um tipo de ciência cartesiana e clássica, que evidencia o completo distanciamento da autora dos debates acadêmicos epistemológicos contemporâneos. Nestes, um modelo de ciência que se retira do diálogo horizontal e narra a si como único e verdadeiro, colocando os outros modelos de forma derivativa, é chamado de indolente e metonímico, porque, sendo parte, ocupa arbitrariamente o lugar da totalidade e se relaciona com as partes como se estas fossem matérias-primas e não legitimidades, tornando-se, consequentemente arrogante (SANTOS, 2004). O artigo poderia sim afirmar a defesa de uma racionalidade médica sobre outras, a partir de um ponto de vista parcial, especialista, linear e disciplinar. Mas isso deveria ser feito com respeito às outras racionalidades. A intolerância nunca expressa sabedoria.

Portanto, essas breves linhas aqui não são para nada refutar em termos de conteúdo. Até mesmo porque, no debate epistemológico crítico, decolonial e dialógico, a afirmação da credibilidade de outras racionalidades médicas legítimas que o mundo vem produzindo desde que é mundo, não implica jamais no descrédito do conhecimento científico, mas apenas no direito a uma co-presença legítima e contra-hegemônica.

A ciência clássica, em sua trajetória indolente, pensa e narra a si sempre a partir de sua interioridade, negando as externalidades e omitindo sua própria construção genealógica, fruto da invenção de um tempo, que teve início na ocasião da ruptura entre a episteme moderna e clássica, e a invenção da primeira como continuidade daquela -, processo muito bem descrito por Michel Foucault, na Obra “As Palavras e as Coisas” (2000). Foucault nos faz ver que o que chamamos hoje de ciência hegemônica é uma vertente, entre muitas outras existentes e possíveis, que encontra a sua origem na Grécia, e que foi eleita na Renascença para inventar um regime de verdade. Mas não era a única e nem a mais complexa. Por isso vemos a todo tempo, na história do pensamento científico, o campo de disputas por hegemonia. Para cada tendência, existem outras tantas. Para René Descartes, pai do método cartesiano, existiu um Blaise Pascal, que irá fecundar o pensamento complexo.

Certo é que nem mesmo Descartes, no seu Discurso do Método, esperava tanta rigidez para os séculos que o sucederiam. Ele é claro quando afirma que não está em busca de um método para o mundo, mas de um método para si, porque ele tinha essa necessidade. No entanto, mesmo Descartes, ao elaborar o seu método do “Cogito, ergo sum” irá fazê-lo a partir de uma inspiração que tivera em sonhos, evidenciando que a vida é mais do que o pensamento analítico.

Estudar, pois, epistemologias, é algo fundamental para que possamos reconhecer a pluralidade dos sistemas e métodos, a diversidade das racionalidades emergentes, e bem conduzir o diálogo científico em um momento pós-pandêmico, em que nem a ciência clássica, com sua indolência, tem sido capaz de promover saúde e qualidade de vida, para além da administração do caos. Nem mesmo a humanidade se tornou melhor com a hegemonia dela.

Logo, a Homeopatia, que nunca deveria ser interpelada pelo seu funcionamento, é uma racionalidade médica legítima, que emerge na tensão deste campo científico que se quer sempre numa dada hegemonia. Dizer que no medicamento homeopático “não sobrou nada ali” é desconhecer a física moderna, o campo biofísico da energia, as ciências da informação, e é reencarnar os princípios newtonianos anacrônicos da materialidade dos átomos, como bolas de bilhar, compartilhando de um espaço e tempo absolutos. De novo, nem Descartes sonhou tão pequeno para o nosso tempo! E se a Homeopatia continua a mesma, nos 200 anos, seria interessante conhecer as suas premissas. Pensar no terreno biológico é diferente de pensar na sobredeterminação dos agentes externos patogênicos. A descrição do campo vital já era prevista em todos os grandes sistemas médicos, muito mais antigos do que a ciência moderna, e que hoje confluem com a concepção do Biocampo1. A mesma lógica que foca na patogenia das doenças, afirmará o placebo como pílula de mentira, desconhecendo todas as interações psiconeuroimunológicas…

O mundo é feito de muitas hipotéticas situações. Algumas delas prestam tanto desserviço à humanidade, que não deveriam ganhar expressão, em forma de palavras, de reflexão, de matéria jornalística. A quem e a que servem a hiperespecialização em um mundo complexo? A quem e a que servem a promoção da intolerância, a ruptura de diálogos? Enfim, a quem e a que servem a monocultura de pensamento, de lógica e de racionalidade? Em vez da homeopatia, há sim reflexões que parecem não servir para nada. Fica a atenção!

Referências

FOUCAULT, M. As Palavras e as Coisas. Uma Arqueologia das Ciências Humanas.
2ª reimp., 8ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

SANTOS, B. S. Para uma Sociologia das Ausências e uma Sociologia das Emergências. In: SANTOS, B. S. (Org). Conhecimento prudente para uma vida decente. Um discurso sobre as ciências revisitado. São Paulo: Cortez Editora, 2004, pp. 777-821.

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